Como moradores de uma comunidade carente e moradores dos edifícios vizinhos lidam com a diferença social
Por Ana Fonseca
No princípio era o Mangue. E a necessidade disse :
– Faça-se moradia
Mas o diabo não deixou e então o homem entrou apulso…
Se existisse um livro para explicar a origem das comunidades carentes no Recife (Coque, Xuxa, Ilha do maruim,Brasília Teimosa,Coelhos, etc. ) certamente esse seria o parágrafo dedicado a uma comunidade localizada no bairro nobre de Boa Viagem.
Há 68 anos a área, de 8.300, era desocupada. O homem, sem moradia, entrou “apulso” (que quer dizer à força; quando não existe uma outra opção ) e construiu seu habitat ali, em cima do Mangue.
Segundo o último senso do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística ) ,2.500 casas abrigam as 10.000 pessoas que moram na comunidade. E ainda que não seja considerada uma favela, de acordo com a Secretaria de Planejamento da Prefeitura da Cidade do Recife, é uma aérea extremamente carente e considerada de risco.
A Associação dos Moradores, criada há 24 anos com o objetivo de defender os interesses da comunidade, tem um presidente, com mandato de quatro anos, eleito pela maioria de votos. Lot Bernardino, atual presidente, 53 anos e morador há 18, diz que os principais problemas para aqueles que residem na Entra Apulso são a falta de saneamento básico e infra-estrutura. Apenas uma escola e o posto de saúde Jader de Andrade dão suporte aos 10.000 cidadãos que ali se encontram. Em compensação, o melhor serviço eleito por eles foi a limpeza urbana (com caminhão de lixo fazendo coleta regular).
Em virtude da localização da comunidade, que fica ao lado do maior Shopping Center da cidade, os moradores terminam sendo vítimas da discriminação causada pelo contraste social ali presente. Basta subir num dos espigões vizinhos para conferir o contraste visual. Alem disto a comunidade é alvo de uma grande especulação imobiliária por se tratar de uma área nobre da cidade. Bernardino explica que eles estão protegidos por uma lei municipal, que foi criada ainda durante o mandato de Jarbas Vasconcelos enquanto prefeito. A Lei protege as comunidades carentes consideradas como parte das zonas especiais de interesse social ( Zeis ).
Já a questão da discriminação não teve ainda solução, uma vez que grande parte dos moradores sofrem preconceitos vindos da parte daqueles que freqüentam o shopping e têm que passar automatizados pelas ruas e sinais próximos da comunidade. “Todo mundo que passa aqui por perto pensa que somos todos ladrões. Minhas crianças não podem sequer brincar na rua que são confundidas com trombadinhas. Eu acho isso um absurdo.Não é porque somos pobres que somos todos ladrões”, desabafa dona Tonha, 30 anos,empregada doméstica e moradora da comunidade desde que nasceu.
A violência ligada ao Tráfico de drogas está presente também naquela comunidade, assim como na maioria das áreas desfavorecidas socialmente, e de acordo com Gabriela Araras, moradora da rua Hélio Falcão, vizinha da comunidade, apesar das rondas que a polícia faz vez por outra, dá para escutar tiros que vêm da comunidade. “Eu ouvi comentários de que ali existe comércio de drogas mas nunca presenciei nem soube de muitos crimes a não ser uma vez que mataram um homem a pauladas e estiraram o corpo na frente da Associação dos moradores”.
Ainda segundo Segurança e violência a opinião de uma síndica de um dos edifícios próximos, que não quis se identificar é de que segurança só existe dentro de casa, e olhe lá. Mas o fato de morarem próximos à favela os tornam conhecidos. “É a política da boa vizinhança. Estamos protegidos de qualquer forma, porque se acontecer algo com algum morador do prédio, mesmo que não seja por culpa deles,a polícia tomará suas próprias conclusões e de fato vão investigar e procurar o culpado entre os nossos vizinhos da favela.Então, eles se sentem meio que na obrigação de nos proteger.Nunca aconteceu nada com nenhum morador do prédio”,revela M.C.C.
Quando o assunto é discriminação, a estudante Gabriela diz que não gosta desse tipo de coisa, mas não há como não existir impacto. “A diferença é explícita. São culturas e hábitos diferentes convivendo perto. Não é uma vizinhança comum”.
É a desigualdade social vista através das janelas dos moradores dos edifícios nobres do bairro de boa viagem, localizados próximos à comunidade entra apulso, De um lado, a ascensão capitalista e do outro, a conseqüência disso.
A Assessoria de Imprensa do Shopping Center Recife não quis falar sobre a existência de projetos sociais ligados àquela comunidade. É quase uma questão política esse tipo de investimento entre grandes empresas que são, muitas vezes, cercadas pela desigualdade social.
Seu Firmino José, 55 anos, morador da comunidade entra apulso, trabalha como porteiro de um edifício em boa viagem, também vizinho da comunidade. Em seis anos de trabalho sempre presenciou comentários e olhares de moradores do edifício, que refletem medo e discriminação em relação aos moradores vizinhos. “Houve uma vez que os meninos do prédio estavam jogando coisas contra os da comunidade e vice versa. Não sei quem começou, mas tal comportamento deve refletir o que as crianças escutam dentro de suas casas. Somos pobres mas não é porque a pessoa é pobre que não merece respeito”, diz seu Firmino.
O contraste social é reflexo do crescimento veloz de grandes cidades em contraponto com a falta de emprego, educação, oportunidades e informação. Em situações como essa, em que uma comunidade carente cresce em meio ao mangue e depois ver espigões se levantarem com seus arranha-céus , é inevitável uma relação de medo e revolta entre todos. E, para suportar tamanha discriminação, só mesmo “apulso”.